Entardecer do meu rio Jacuí...

Entardecer do meu rio Jacuí...
.. posso te afirmar que ¨contar histórias é trazer à baila, trazer à tona¨. Não é uma atividade inútil. Embora haja intercâmbio de histórias, quando duas pessoas trocam histórias como presentes mútuos, na maior parte dos casos elas chegaram a se conhecer bem.Alguns deitaram com a história e descobriram dentro de si mesmos e em profundidade todas as partes que se harmonizavam. Ao lidarmos com palavras e histórias estamos trabalhando com energia arquetípica, que é muito similar com a eletricidade.
Bem-vindo!

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Cães em dia de chuva

Fazia muito calor no interior do carro, abri uma nesga do vidro propiciando que o vento circulasse enquanto o veículo avançava rumo à cidade de Santa Maria. As árvores passavam rápidas como se borrões verdes fossem , quase horário de almoço e a fumaça saía de algumas chaminés das casas ao longo da estrada.
Dentro do carro um silencio total. Procurei o botão do rádio, mas logo percebi meu ato falho, não estava em meu carro. Estava dirigindo uma viatura policial, elas não possuem rádios de AM/FM.
No banco traseiro outro colega policial e um adolescente sendo levado para a FASE (Fundação de Assistência Sócio-Educativa) ou no entendimento popular: FEBEM.
Disfarçadamente olhei para ele através do retrovisor. Magro. Cabelos grandes, crespos e mal-cuidados.Roupas largas. Um prenúncio de barba em seu rosto, mas o olhar, ah o olhar chamava a atenção, olhos pequenos de cor marrom, emoldurados por olheiras escuras, mas não transmitiam nada. Vazios.Distantes.Perdidos.Indiferentes. Olheiras oriundas da pedra. Maldito crack.
Imaginei-o com sete ou oito anos, brincando com um caminhãozinho atado por um barbante numa rua lamacenta, só de calção, mas feliz. Com olhos expressivos e vivazes. Maldita pedra. Lembrei que o conhecia desde pequeno (tinha um irmão mais velho já no crime) e seus olhos eram vivos, iluminados e felizes, debalde sua condição social .(Depois dizem que é a miséria que muda o mundo e suas crianças; que nada, o que mudou o mundo foi a pedra de crack, ser pobre nunca significou desgraça, inconformidade, não somos dalits!)
Em seu currículo, muitos furtos e a suspeita de que já pratique assaltos, baixa escolaridade, nenhum curso técnico e nenhum sonho para sonhar. Só indiferença.
Já repararam nos olhos das crianças e adolescentes que perambulam pelas ruas? Olhe somente os seus olhos. Não se perca na sua roupa e no seu estilo ¨ tô nem aí ¨, olhe os olhos destas crianças.
Se eu fosse político e votasse leis, me deteria a olhar os olhos das crianças da minha cidade. Eles pedem socorro.
O colega perguntou como ele havia pulado o muro de uma casa onde praticara mais um furto já que a altura do muro era bem grande. Nem olhou para seu interlocutor, olhando para as árvores que não se detinham e passavam apressadas, disse: ¨ passava muitas vezes na frente daquela casa e estudava uma maneira de entrar, foi fácil ¨. Fácil !? O colega perguntou novamente, ¨ mas e o cachorro, como entrastes numa casa com um cão tão furioso, um pitbul l?¨ ¨ Foi simples, disse ele, sempre olhando para fora, com o olhar perdido nos borrões verdes, cachorros não saem de suas casinhas em dia de chuva. Eu esperei uma noite de chuva e pulando o muro, entrei pé por pé, furtei as roupas todas da área e fui embora¨.
Meu olhar encontrou o do colega pelo retrovisor e voltei a olhar para a estrada. Maldito crack.
Cães não saem de suas casinhas em dias de chuva. E não é que é verdade?
Dias depois, chuva forte, me surpreendi observando meus dois cachorros e por mais que fizessem barulho na frente da casa, eles só erguiam o pescoço, davam uma espiada e deitavam novamente suas cabeças no quentinho das casinhas! Uau !!